— Emilio Antonio Nuñez —
Sem dúvida a data de 31 de
outubro de 1517 é de grande transcendência na história universal. A Reforma
exaltou verdades bíblicas que formam o sustentáculo de nossa evangelização. De
uma maneira e outra, todos os cristãos evangélicos são herdeiros da Reforma.
Embora tenha sido um movimento de profundas repercussões culturais, sociais e
políticas, é de bom alvitre agarrarmo-nos aos fundamentos teológicos desta
mensagem e, de maneira particular, à soteriologia dos reformadores. Para
cumprir esse propósito, recorreremos a quatro grandes postulados da Reforma:
Sola Gratia, Solo Christus, Sola Fide e Sola Scriptura.
Só a
graça
Ensinam os reformadores que o pecador é justificado unicamente
pela graça de Deus, mediante a fé em Jesus Cristo. Neste caso, a graça é o
favor divino que o homem não merece, mas que, em sua soberania e bondade, Deus
quer dar-lhe. A salvação é obra de Deus, não do homem. Paulo diz: “Pela graça
sois salvos, mediante a fé; e isto [a salvação] não vem de vós, é dom de Deus;
não [vem] de obras, para que ninguém se glorie” (Ef 2.8-9). Em outra epístola,
o apóstolo explica: “Se é pela graça, já não é pelas obras; do contrário, a
graça já não é graça” (Rm 11.6).
O homem estende a mão vazia para receber, não a mão cheia para
oferecer. Não tem nada a oferecer em troca de sua salvação. Tampouco pode
cooperar com a graça divina para salvar-se. Está morto em seus delitos e
pecados. Somente se dispõe a receber o favor de Deus.
O conceito de só pela graça é um golpe mui severo no
orgulho humano. Aqui não há lugar para a auto-suficiência, nem para a
arrogância do que pretende salvar-se a si mesmo e a outros, mesmo por meio de
esforços que aos olhos da sociedade parecem mui nobres e heróicos.
Deus é sempre “o Deus de toda a graça” (1 Pe 5.10). A salvação
sempre foi, é e sempre será pela graça. Mas esta graça vem em plenitude na
pessoa de Jesus Cristo (Jo 1.17). Cristo é o dom inefável de Deus ao mundo. O
homem pode salvar-se em Cristo, não à parte de Cristo.
Só
Cristo
A mensagem dos reformadores era cristológica e cristocêntrica.
Assim deve ser a nossa. Jesus declarou: “Eu sou o caminho, e a verdade, e a
vida; ninguém vem ao Pai senão por mim” (Jo 14.6). E, segundo o apóstolo Pedro,
“não há salvação em nenhum outro; porque abaixo do céu não existe nenhum outro
nome, dado entre os homens, pelo qual importa que sejamos salvos” (At 4.12).
Compete-nos escutar de novo estas declarações que se opõem
radicalmente a todo intento sincretista ou universalista. Gostemos ou não, o
evangelho neo-testamentário é inclusivo e exclusivo. Inclui todos os que
recebem a Jesus Cristo como único mediador entre Deus e os homens, e exclui
todos os que resistem à graça de Deus. Não nos cabe incluir o que Deus não incluiu,
nem excluir o que Ele não excluiu.
Só Cristo salva. Mas, qual Cristo? Definitivamente não se trata
aqui do Cristo dos dogmas de feitura puramente humana, nem do Cristo da
imaginação antiga e moderna, nem do Cristo do folclore latino-americano, nem do
Cristo superstar das sociedades opulentas do Norte, nem do Cristo dos
poderosos interesses econômico-sociais em nosso continente, nem do Cristo dos
ideólogos de última hora. O Cristo que salva é senão aquele que é revelado nas
Escrituras.
O Cristo revelado nas Escrituras é o Cristo Deus — o Logos eterno,
associado eternamente com o Pai e com o Espírito, criador e sustentador dos
céus e da terra, o Senhor da vida e da história, o Alfa e o Ômega, o princípio
e o fim, o “que é, que era e que há de vir”, o Todo-poderoso Senhor.
O Cristo revelado nas Escrituras é o Cristo histórico —
manifestado no tempo e no espaço, em data precisa do calendário de Deus, na
plenitude da história humana, no contexto de uma geografia, de um povo, de uma
cultura, de uma sociedade.
O Cristo revelado nas Escrituras é o Cristo humano — engendrado
pelo Espírito, concebido pela virgem Maria, participante de carne e sangue,
“feito carne”, identificado plenamente com a humanidade.
O Cristo revelado nas Escrituras é o Cristo profeta — o
arauto de Deus Pai, intérprete da Divindade, revelador da vontade divina para
seu povo e para toda a humanidade.
O Cristo revelado nas Escrituras é o Cristo sacerdote — o
que está assentado à direita da Majestade nas alturas e “tam-bém pode salvar
totalmente os que por Ele se chegam a Deus, vivendo sempre para interceder por
eles” (Hb 7.25).
O Cristo revelado nas Escrituras é o Cristo rei, que está
para vir — o Juiz de vivos e de mortos, o Rei dos reis e Senhor dos senhores, o
Cristo da renovação total.
Só a fé
A grande descoberta do frade Martin Lutero nas Escrituras foi que
“o justo viverá por fé” (Rm 1.17). Essa verdade bíblica chegou a ser um grito
de batalha na Reforma.
A fé é a mão que recebe a dádiva de Deus em Jesus Cristo.
Certamente para o evangelista João, receber a Cristo parece ser um equivalente
de crer nele (Jo 1.12). Por meio da fé fazemos nossos os benefícios de Cristo
crucificado e ressuscitado. É nesses benefícios que descansa nossa segurança
eterna de salvação.
A fé mediante a qual somos justificados não é cega, não é mera
credulidade. Tampouco é a fé um mero assentimento à verdade revelada. É muito
mais que um mero exercício intelectual. Ter fé é confiar, é abandonar-se nas
mãos de Jesus Cristo, reconhecendo a enormidade de nossa culpa e a totalidade
de nossa incapacidade para libertar-nos por nós mesmos do pecado. É admitir que
os méritos humanos são inúteis para fins de justificação. É lançar mão do valor
infinito da pessoa e obra do Filho de Deus. Ter fé em Jesus Cristo é deixar-se
salvar por Ele.
A fé implica também obediência. Quando o homem crê que o Evangelho
é a verdade, sente-se na obrigação de obedecê-lo. Segundo a doutrina da
Reforma, o pecador é justificado só pela fé, mas a fé que justifica não permanece
só. Não é uma fé estéril, muito menos morta. O ensino de Tiago (2.14-26) se
harmoniza plenamente com o ensino de Paulo, o qual afirma que não somos salvos
por obras, mas sim, para obras que Deus “de antemão preparou para que
andássemos nelas” (Ef 2.10). Estas boas obras são o fruto da salvação,
não a causa dela.
Crer em Jesus Cristo significa, além do mais, entrar em sério
compromisso com Ele, com sua Igreja e com a sociedade. Não aceitamos Jesus
Cristo para evadir nossas responsabilidades morais e viver como nos agrada,
depois de haver adquirido uma apólice de seguro para a eternidade. No Evangelho
há reclamos de caráter ético.
Jesus teve o cuidado de advertir as multidões sobre as dificuldades
do caminho que Ele lhes propunha. Não guardou silêncio sobre as exigências do
discipulado. Ninguém poderia queixar-se de que Ele lhes
enganara com a oferta de uma “graça barata”. Seu interesse estava na qualidade,
não na quantidade de seus seguidores.
Só a
Escritura
Aceitaram os paladinos da Reforma a autoridade suprema das Escrituras,
não só no que diz respeito à doutrina da justificação pela fé. Eles
determinaram submeter sua fé e sua vida ao ditame final do cânon bíblico, e não
a outra autoridade, fosse a do magistério eclesiástico, ou a da razão natural,
ou a dos impulsos do coração. Aceitaram e proclamaram as Escrituras como sua
norma objetiva e final. Foi fundamentalmente por essa declaração que os reformadores
e a Igreja oficial daqueles tempos dividiram seus caminhos.
Nessa transcendental decisão, os reformadores não fizeram mais do
que continuar uma longa tradição que vem desde os tempos do Velho Testamento e
desde os dias de Cristo e seus apóstolos. Os profetas apelaram para a lei
escrita como sua autoridade final. Cristo autenticou seu ministério ante o povo
com a lei de Moisés, os profetas e os Salmos (Lc 24.44). Os apóstolos também
se apoiaram na autoridade do Antigo Testamento. A Igreja antiga aceitou ambos
os Testamentos e teve assim um cânon mais extenso ao qual apelar para suas
decisões de fé e prática. Os reformadores fizeram que o “Assim diz o Senhor” e
o “Está escrito” ressonassem poderosamente no âmbito da cristandade ocidental.
Através dos séculos o princípio da Sola Scriptura tem sido
ameaçado e desafiado pela razão natural, pelo sentimentalismo pietista, pela
pressão eclesial (católica e protestante), ou pela presunção de líderes que se
creem superdotados para impor ao povo de Deus seu sistema de interpretação.
Os reformadores advogaram não a livre interpretação, mas o livre
exame das Escrituras. O sacerdócio universal dos crentes — outra das grandes
doutrinas exaltadas pela Reforma — não autoriza a ninguém torcer e retorcer o
texto bíblico.
Se não acatarmos a norma objetiva das Escrituras, se não nos
submetermos ao senhorio de Cristo, se não estivermos em sintonia com o Espírito Santo, se nos distanciarmos da comunidade da fé —
seremos presa fácil do subjetivismo, ou do relativismo, ou poderemos cair
ingenuamente na trama de uma ideologia, não importa de que cor seja ela.
Nota:
*Soteriologia é o ramo da teologia que trata da salvação, da obra
de Cristo. Tratado teológico que tem como objeto a redenção do homem.
Observação:
Condensação da mensagem de abertura do Segundo
Congresso Latino-americano de Evangelização — Clade II — no dia 31 de outubro
de 1979, por ocasião do 462º aniversário da Reforma Religiosa do Século XVI,
por Emilio Antonio Nuñez, um dos mais conhecidos teólogos da América Latina.
Nascido em El Salvador, reside há muitos anos na Guatemala.
Extraido do Livro: REFORMA - A VITÓRIA DA GRAÇA. Editora Ultimato